Ricardo Icassatti Hermano
Domingo é um bom dia para falar de saudade. Essa palavra que tem um significado único para nós brasileiros. No resto do mundo esse sentimento é descrito como tristeza ou sentir falta da terra natal. Nós ampliamos o seu sentido para caber tudo o que nos cerca. Temos saudade até do futuro, como cantava Renato Russo.
Na noite/madrugada da última quinta-feira, assisti na TV a cabo um show do James Taylor, uma lenda dos anos 1970. Compositor e cantor de mão cheia, fez sucesso com baladas country românticas que falavam das suas saudades, especialmente da sua terra, o estado norte-americano da Carolina do Norte.
Mas, foi uma outra canção sua que fez história e marcou a época em que os jovens eram hippies cabeludos pregando a paz e o amor. Um sonho bonito que durou pouco, como é da essência dos sonhos. Essa canção de James Taylor chama-se You've Got a Friend. No vídeo abaixo, ele ainda tinha cabelão e bigode.
Ao ouvir a canção, lembrei de um grande e velho amigo. O nome dele é Wagner Rossi, ou Guna, como eu o chamo. Ele sempre diz que toda vez que ouve essa música lembra-se imediatamente de mim. Para nós dois, essa música faz todo o sentido. Acredito que para chamar alguém de "amigo" é preciso comer um prato de sal juntos.Wagner e eu comemos alguns pratos de sal juntos.
Nos conhecemos por acaso no início das nossas adolescências. O colégio onde eu havia estudado toda a infância organizou uma festinha para os alunos e meus antigos colegas me convidaram.
Chegando lá, dei de cara com umas figuras que andavam em bando arrumando confusão em festas. Nunca fui de andar em bando. Gosto de andar sozinho. Em bando, todo mundo é valente e já botei muito bando para correr.
Naquela época, um outro amigo, Eduílton "Bocão", já havia me apresentado a Soul Music americana e o pop dançante da banda Jackson Five. Foi como uma droga altamente viciante. Tentávamos pentear os cabelos no estilo "Black Power" e imitávamos os passos do Rei James Brown e dos irmãos Jackson, cuja estrela maior era o pequeno Michael com sua voz poderosa.
E, naquela festa, as tais figuras que andavam em bando não gostaram do baixinho meio patolinha que dançava no salão como um negão americano. As figuras vieram até mim e tentaram me atiçar a ponto de brigar com o baixinho dançante. É claro que dei risada. Disse a eles que se não haviam gostado do sujeito, que fossem lá e quebrassem a cara dele. Eu não tinha nada a ver com aquilo.
Aí prestei atenção no jeito que o baixinho dançava e mudei de ideia. Disse para as figuras que se encostassem a mão no cara eu encostaria a minha mão neles. Sem entender nada, as figuras me perguntaram por que. Respondi que havia gostado dos passos de dança do baixinho e fui lá dizer isso a ele e pedir que me ensinasse.
Como vocês já devem ter notado, não fui muito popular na minha adolescência. Mas, tinha a meu favor o fato de ser um lutador de Karatê. O que me ajudou bastante, devo confessar.
Mas, desde então Wagner e eu somos amigos. Montamos uma equipe de competição para correr de Kart. Minha carreira de piloto terminou um ano depois num acidente espetacular, que envolveu um piloto bêbado e o Roberto Pupo Moreno. Depois ajudei o Wagner a conseguir patrocínio para correr de Fórmula Ford. Fizemos uma série de viagens hilárias. Aliás, as nossas viagens sempre foram hilárias.
Ele continuou e fez carreira no mundo automobilístico de competição. Eu virei jornalista e me apaixonei pela política. Ele casou com a Junia. Eu me casei quatro vezes. Eles não quiseram ter filhos. Eu tive três e ajudei a criar outros sete. Eles foram morar nos Estados Unidos. Eu morei em Natal e Boa Vista, mas acabei voltando para Brasília. Hoje, eles moram uma parte do ano em Maceió e a outra em Miami.
E nossa amizade só se fortaleceu em todos esses anos. Mesmo quando deixamos de nos falar. Brigamos porque ele terminou com a Junia, quando ainda namoravam, e eu lhe disse que estava perdendo a mulher da sua vida. Uns dois anos depois, voltamos a nos falar quando ele e ela me procuraram para entregar o convite de casamento.
Mas, eu estava falando de saudade. Há alguns anos, recebi a notícia de que o Wagner estava indo às pressas para São Paulo para se submeter a uma cirurgia de ponte de safena. O quadro dele foi considerado gravíssimo por ninguém menos do que o Dr. Adib Jatene. Liguei imediatamente, apesar de ter sido advertido que ele não poderia atender telefonemas para não se emocionar.
Junia atendeu e me disse exatamente isso, que as condições dele eram péssimas, que ele não poderia falar e que estavam fechando as malas e correndo para o aeroporto.Wagner perguntou quem era e quando soube que era eu atendeu o telefone. Fui a única pessoa com quem ele falou por telefone naquele dia. Choramos por 20 minutos antes que pudéssemos dizer qualquer coisa.
Agora mesmo, lembrando aquele momento terrível, volto a sentir o mesmo medo, a mesma falta de chão e a chorar copiosamente. Quando consegui falar novamente, disse que ele estava proibido de morrer porque tenho poucos amigos de verdade. Conto nos dedos de uma mão. Ele não poderia me sacanear daquela maneira. Iria embora para um lugar melhor e me deixaria aqui ralando. Assim não dá.
Felizmente, deu tudo certo e ele ficou novo em folha. Fui com outro amigo nosso, o Sérgio Ilha "Botinha", visitar o Wagner no hospital em São Paulo. Passamos o dia lá e voltamos à noite. Foi mais uma porrada emocional. Um ano mais tarde, encontrei o Dr. Adib Jatene nos corredores do Senado. Agradeci a ele por ter salvo a vida do meu amigo. Ele já havia parado de operar, mas abriu uma exceção devido à gravidade do caso.
Depois de todas essa recordacões, saio do trabalho na sexta-feira, chego em casa, abro meu e-mail e lá está uma mensagem do meu amigo Wagner. Não nos falávamos a mais de um ano. Nessas horas é que podemos ver como tudo está conectado, como os laços emocionais se mantêm e fazem contato quando sentimos saudades. Que força poderosa é essa.
E a saudade é um negócio estranho, porque quando sentimos ela se espalha. Bastou sentir saudade do meu amigo e comecei a sentir saudade de outras pessoas e coisas, do passado, do presente e do futuro. Senti saudades dos meus filhos ainda pequenos. Eram crianças lindas e hoje são homens lindos. Mosfí Indo!
Senti saudades dos bons momentos e até dos nem tão bons assim. Afinal, todos eles me trouxeram até aqui, até esse texto que escrevo com enorme prazer. Senti saudades das festas, das meninas sempre cheirosas, das roupas coloridas, da inocência, das loucuras, das tolices, das brigas, das viagens de mochila nas costas, da velocidade, das aventuras, das descobertas, da vida simples, descomplicada ...
Senti saudade da minha infância, das fazendas, de galopar montado em pelo nos cavalos feito um índio apache, das corridas de autorama, de encarnar o Tarzan nas mangueiras, de pescar bagres para o almoço e nadar nas cachoeiras geladas. Senti saudade da minha avó Arcângela. Senti saudade do seu filho, meu pai Manduquinha.
Senti saudade das motocicletas, do vento, do sol, da lua, das nuvens, das estrelas, dos veleiros, do alto mar. Lá fora, tudo é tão diferente, imenso. Senti saudade da areia nas solas dos pés e do silêncio no fundo do mar. Senti falta das gargalhadas, das palhaçadas e do descompromisso. Senti saudade da Lolita e do Black.
Senti saudade de pessoas que conheço e que ainda vou conhecer. Senti falta da liberdade que enche os pulmões e nos dá a certeza que vale a pena viver intensamente, corajosamente, sem medo do amanhã, sem medo de nada. Tenho visto tanta gente acovardada, deprimida, desanimada, acomodada, achando que não há saída.
Acho que preciso de férias. Tirar a poeira da minha mochila e cair na estrada. O Wagner está me enviando um mapa rodoviário dos Estados Unidos. Quem sabe? Antes, preciso dar uma passada em Campinas ...