Ricardo Icassatti Hermano
Amanhã, Renato Russo, vocalista e compositor da banda Legião Urbana, faria 50 anos de idade. Morreu cedo demais. Criativo e genial como era, ainda teria muito a deixar para nós. Ele fez de tudo um pouco, mas foi na música que se realizou e nos deu sua maior obra.
Meninos geniais
Suas músicas são a cara de Brasília. Ou melhor, são a cara de uma determinada época de Brasília, de uma determinada geração. A minha geração. No meu caso, as músicas Eduardo e Mônica, Pais e Filhos e Faroeste Caboclo são a trilha sonora da minha adolescência. Já para o meu irmão Bily a trilha sonora deve incluir necessariamente Índios.
Renato Russo compôs para a sua geração, contando as histórias que rolavam entre aquela juventude meio perdida entre o "Paz e Amor" dos hippies e a realidade punk da ditadura militar. Nossas histórias e memória estão todas registradas para sempre na obra da Legião Urbana.
Ah, a juventude que essa brisa canta ...
Aquela "Rockonha" da música existiu mesmo e foi uma armadilha para pegar filhos de parlamentares. Os flyers da festa foram passados de mão em mão no estacionamento da extinta lanchonete Chaplin, onde milhares de jovens iam nas tardes de sábado e domingo para zoar, paquerar, comer, conversar ou não fazer nada. Dizem que um deles caiu nas mãos de um agente da Polícia Federal infiltrado no meio da garotada.
Na época, eu tinha uma Brasília arregaçada, que nos finais de semana era o transporte de amigos e amigas em busca de diversão. Estávamos a meio caminho da"Rockonha" quando alguém sugeriu um programa melhor que ficar chapado no meio do mato. Acho que era outra festa mais divertida. Fizemos meia volta e escapamos da prisão certa.
Adivinhem quem é o invocado aí na foto
Os jovens de hoje não conheceram outra coisa que não fosse a democracia e suas liberdades garantidas. Ainda bem. Nós vivemos a obrigatoriedade de portar algum documento de identidade sob pena de prisão. Vivemos a censura que nos afastava da arte, da cultura, da informação e do conhecimento. Vivemos o abuso de autoridade que prendia sem precisar de motivo. Vivemos a prisão, tortura e morte de amigos e parentes. Vivemos a incerteza e a porrada.
Mas, também vivemos a coragem, assumimos riscos, colocamos nossas vidas em jogo. Vivemos no fio da navalha e nos forçamos a aprender. Apesar de tudo, também tivemos nossa cota de amores, alegrias, descobertas, esperanças, realizações, tristezas e decepções. E tivemos o rock'n roll para nos salvar da insanidade. O nosso maior presente por todo o sacrifício foi a genialidade de Renato Russo.
Renato Russo
Mas, nem ele escapou da censura. Na música Faroeste Caboclo, a parte em que fala:"E não protejo general de 10 estrelas, que fica atrás da mesa com o cú na mão", era editada e retirada nas rádios. Mas, sempre era possível fazer alguma coisa. A gente cantava nas ruas, nas festas, nos colégios.
O Brasil inteiro gosta de Renato Russo, mas aqui em Brasília ele é amado por tudo o que nos deu. Por isso, o Café & Conversa não poderia deixar de prestar sua pequena e humilde homenagem, mas feita com o coração. Valeu Renato Russo! Valeu Legião Urbana!
Com vocês, Faroeste Caboclo, numa animação bem bacana feita pelo Leonardo Amaral de Souza, lá de Itapevi/SP. Ele é a prova viva de que não é preciso muito para fazer arte, mas é imprescindível ter imaginação e vontade de fazer.
Faroeste Caboclo
Renato Russo e Legião Urbana
Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu
Quando criança só pensava em ser bandido
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da sertania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu
Ia pra igreja só prá roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria, escolheu a solidão
Comia todas as menininhas da cidade
De tanto brincar de médico, aos doze era professor.
Aos quinze, foi mandado pro o reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.
Não entendia como a vida funcionava
Discriminação por causa da sua classe e sua cor
Ficou cansado de tentar achar resposta
E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.
E lá chegando foi tomar um cafezinho
E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem
Mas João foi lhe salvar
Dizia ele: "Estou indo pra Brasília
Neste país lugar melhor não há
Tô precisando visitar a minha filha
Eu fico aqui e você vai no meu lugar"
E João aceitou sua proposta
E num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal
"Meu Deus, mas que cidade linda,
No Ano-Novo eu começo a trabalhar"
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava cem mil por mês em Taguatinga
Na sexta-feira ia pra zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto bastardo do seu bisavô
Um peruano que vivia na Bolívia
E muitas coisas trazia de lá
Seu nome era Pablo e ele dizia
Que um negócio ele ia começar
E o Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa
E decidiu que, como Pablo, ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E sem ser crucificado, a plantação foi começar.
Logo logo os maluco da cidade souberam da novidade:
"Tem bagulho bom ai!"
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos os traficantes dali.
Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
E ia pra festa de rock, pra se libertar
Mas de repente
Sob uma má influência dos boyzinho da cidade
Começou a roubar.
Já no primeiro roubo ele dançou
E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro do seu corpo
"Vocês vão ver, eu vou pegar vocês"
Agora o Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal
Não tinha nenhum medo de polícia
Capitão ou traficante, playboy ou general
Foi quando conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele pra ela o Santo Cristo prometeu
Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
"Maria Lúcia pra sempre vou te amar
E um filho com você eu quero ter"
O tempo passa e um dia vem na porta
Um senhor de alta classe com dinheiro na mão
E ele faz uma proposta indecorosa
E diz que espera uma resposta, uma resposta do João
"Não boto bomba em banca de jornal
Nem em colégio de criança isso eu não faço não
E não protejo general de dez estrelas
Que fica atrás da mesa com o cú na mão
E é melhor senhor sair da minha casa
Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião"
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse:
"Você perdeu sua vida, meu irmão"
"Você perdeu a sua vida meu irmão
Você perdeu a sua vida meu irmão
Essas palavras vão entrar no coração
Eu vou sofrer as conseqüências como um cão"
Não é que o Santo Cristo estava certo
Seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar
Se embebedou e no meio da bebedeira
Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar
Falou com Pablo que queria um parceiro
E também tinha dinheiro e queria se armar
Pablo trazia o contrabando da Bolívia
E Santo Cristo revendia em Planaltina
Mas acontece que um tal de Jeremias,
Traficante de renome, apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que, com João ele ia acabar
Mas Pablo trouxe uma Winchester-22
E Santo Cristo já sabia atirar
E decidiu usar a arma só depois
Que Jeremias começasse a brigar
Jeremias, maconheiro sem-vergonha
Organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar
Desvirginava mocinhas inocentes
Se dizia que era crente mas não sabia rezar
E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
"Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já tá em tempo de a gente se casar"
Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez
Com Maria Lúcia Jeremias se casou
E um filho nela ele fez
Santo Cristo era só ódio por dentro
E então o Jeremias pra um duelo ele chamou
Amanhã às duas horas na Ceilândia
Em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou
E você pode escolher as suas armas
Que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia
Aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor
E o Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter da televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora e o local e a razão
No sábado então, às duas horas,
Todo o povo sem demora foi lá só para assistir
Um homem que atirava pelas costas
E acertou o Santo Cristo, começou a sorrir
Sentindo o sangue na garganta,
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e
A gente da TV que filmava tudo ali
E se lembrou de quando era uma criança
E de tudo o que vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
"Se a via-crucis virou circo, estou aqui"
E nisso o sol cegou seus olhos
E então Maria Lúcia ele reconheceu
Ela trazia a Winchester-22
A arma que seu primo Pablo lhe deu
"Jeremias, eu sou homem. coisa que você não é
E não atiro pelas costas não
Olha pra cá filha-da-puta, sem-vergonha
Dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão"
E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor
E o povo declarava que João de Santo Cristo
Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV
E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz...
Sofrer...