Ricardo Icassatti Hermano - Texto
Romoaldo de Souza - Locução do podcast
A vida tem muitos mistérios que jamais conseguiremos compreender em sua plenitude. O mundo é redondo e gira. Tudo pode terminar no mesmo lugar em que começou. As Leis do Karma e do Dharma. Somos limitados a três dimensões e presos em nossos dramas. Hoje, trazemos mais uma história contada numa mesa da Ernesto Cafés Especiais. Como sempre, trata-se de história verdadeira, acontecida e vivida. A pedido, trocamos os nomes dos personagens, locais etc.
Um fenômeno tem infernizado a vida dos habitantes das grandes cidades nordestinas. Proprietários de automóveis resolveram transformar seus veículos em trios elétricos mirins. Instalam amplificadores potentes, autofalantes imensos e impõem seu péssimo gosto musical a quem não tem nada a ver com tamanho retardamento mental. Inventaram até campeonatos para premiar os maiores provocadores de surdez alheia.
Isso levou muitas prefeituras a simplesmente proibir não só os tais campeonatos, mas também o famigerado hábito de enlouquecer frequentadores de bares, lanchonetes e assemelhados. Assim, os donos dessa máquinas diabólicas foram obrigados a migrar seus campeonatos para as cidades menores do interior, onde a novidade ainda é vista com curiosidade. Afinal, novidade em cidade pequena sempre é benvinda.
E foi num desses campeonatos que a nossa história começou. João Menino, esse era o seu nome, saiu sorridente da pequena cidade do interior da Paraíba. Não somente por ter tomado umas, mas pela alegria de ter conquistado seu primeiro título de campeão num Racha de Carro de Som, como é chamado naquela região do Brasil o campeonato em que carros afrouxam os parafusos com tanto barulho. Havia alcançado e ultrapassado o triplo do limite de decibéis estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (55 decibéis) com o som do seu carro. Algumas pessoas vomitaram e todas iriam passar a noite em claro com zumbido nos ouvidos e algumas até com lesões permanentes.
Vinha pela estrada de volta para casa cantarolando uma música qualquer quando avistou uma dessas bibocas de beira de estrada. Resolveu parar e tomar uma talagada de pinga. O chão de cimento queimado revelava a qualidade do estabelecimento. Cachorros vira-latas dormiam pelos cantos e galinhas ciscavam o terreno do lado de fora. Qualquer semelhança com cenário de filme de faroeste é mera coincidência. João Menino resolveu alegrar o ambiente árido, calorento e preguiçoso mostrando a pujança do som a bordo do seu veículo. Ligou a geringonça e entrou no bar com a confiança de um verdadeiro campeão.
Com as mãos sobre o balcão, pediu ao rapaz com um pano encardido no ombro que lhe servisse uma talagada da sua melhor cachaça. O rapaz, com cara de poucos amigos, serviu a cachaça num copo americano. Assim que tampou a garrafa, disse: "Vou lhe pedir que desligue o som do seu carro. Está incomodando a freguesia e nós não permitimos isso por aqui". João Menino olhou ao redor, três bêbados estavam sentados nas duas únicas mesas disponíveis. Todos o encaravam com olhares insondáveis. Não dava para saber se estavam gostando ou não. A única certeza era a raiva do rapaz do outro lado do balcão.
Aqui a história se divide em duas versões. Uns dizem que João Menino se recusou a desligar a traquitana. Outros dizem que ele prontamente desligou o som, mas outros competidores viram seu carro parado na biboca e resolveram parar também. Esses teriam ligado seus respectivos aparelhos e o resultado foi a tolerância zero do dono da biboca. Armado de uma peixeira saiu como o Wolverine a fatiar e furar o que visse pela frente. E quem estava à sua frente era João Menino, que faleceu de facada certeira. O rapaz da biboca está foragido.
Mas, a história não termina aí. A tragédia maior veio depois, quando o pai de João Menino foi até a biboca para recolher o corpo do filho e prestar depoimento à polícia. Lá ficou sabendo que o rapaz da peixeira é filho de uma ex-namorada sua, abandonada há muitos anos. Soube que ela havia ficado grávida logo depois, mas nunca lhe passou pela cabeça que poderia ser o pai daquela criança. A moça seguiu seu caminho e ele seguiu outro rumo, vindo a se casar e ser pai em seguida. Irmão matou irmão sem saber.
Como dissemos no início dessa história, a vida tem mistérios que são inalcançáveis pela nossa compreensão. Certamente, existem elos, links, entrelaços que não enxergamos claramente num momento, mas que se revelam em outro no futuro. Ou não.